Lei Seca não reduz mortes de jovens!


calçada | Ipanema - Rio de JaneiroDomingão, primeiro de novembro, véspera do Feriado de Finados. Céu azul, calorzão de 35 graus. A praia promete. Pais e Mães, lêem, então, na capa, manchete principal, do jornal O Globo:

Lei Seca não reduz número de mortes de jovens no trânsito

As mortes de jovens cariocas no trânsito cresceram quase 27 %, comparando-se o período de janeiro a agosto de 2008 (quando a Lei Seca inexistia, na prática) com os primeiros oito meses de 2009 (quando já estava a todo vapor a fiscalização na ruas, através da “Operação Lei Seca”).

Conclui-se, portanto, que o mundo era melhor ANTES da Lei Seca… Ter entre 15 e 29 anos no Rio de Janeiro é mesmo uma barra, brother!!!

A situação nunca foi boa, é verdade. Acidentes de trânsito e agressões por arma de fogo sempre encabeçaram as principais causas de morte da galera. Aliás, não apenas na Cidade Maravilhosa – jovem brasileiro morre de violência. E agora mais essa! Como se não bastasse todo o resto, ainda tem essa Lei Seca para piorar as coisas!  Pais cariocas realmente não têm motivo para dormir tranquilos.

A questão é: o que isso tem a ver com a Lei Seca ?

N-A-D-A

A denúncia de que a Lei é um fracasso justamente entre seus alvos mais importantes, os jovens, NÃO decorre nem das estatísticas, nem de qualquer outra informação, apresentadas pelo O Globo. Por que a Lei deveria ter impedido a morte desses 8 jovens (esse é o número absoluto que corresponde ao crescimento de 27% no período comparado)?

É um fato bem conhecido que o álcool (e outras drogas, não vamos esquecê-las) fundiu-se ao lazer de praticamente todas as faixas etárias. Para a maioria, o lazer está circunscrito ao fim de semana – na verdade, para muitos trabalhadores, apenas à noite de sábado e, aí sim, ao santo domingo.

Nesse período privilegiado de diversão e sociabilidade, acontece quase a metade de todas as mortes no trânsito. Elas vão ocorrendo ao longo do dia, em plena luz do sol (as tardes de domingo são especialmente traiçoeiras, não se iluda), aumentando, é claro, quando cai a noite e avança a madrugada.

O casamento entre noite, fim de semana, balada, álcool e morte no trânsito parece, portanto, inquestionável – uma dessas verdades óbvias. Como todo casamento, no entanto, esse também guarda um certo mistério.

O álcool é um fator CONTRIBUINTE dos acidentes. Isso é tudo o que sabemos objetivamente. Trata-se de um contribuinte importante, sempre no topo da lista do mal, mas apenas um dentre muitos outros. Raramente alguém pode afirmar que o álcool CAUSOU um dado acidente. É por isso que se diz que o álcool está ASSOCIADO ao acidente, ou que ele está ENVOLVIDO (no meio de muitas outras coisas) no acidente. Apenas como uma inferência indireta, forçando bem a barra, podemos dizer que aquela pessoa “morreu porque bebeu“.

Ninguém morre “de álcool” no trânsito. O que mata as pessoas é a VELOCIDADE. Você morre porque estava solto no carro, sem cinto de segurança, boiando no banco traseiro, bêbado ou sóbrio, ou porque meteu um capacete na cabeça e sequer o prendeu abaixo do queixo, e esse veículo colidiu contra um obstáculo qualquer em velocidade. É assim que se morre no trânsito e é assim, também, que se produzem uma lesão cerebral ou uma lesão medular.

A Lei Seca é um grande avanço institucional porque viabiliza uma intervenção poderosa nessa cadeia complexa de eventos mas, na melhor das hipóteses, ela está lidando com apenas um elo dessa cadeia. Beber e NÃO dirigir é uma atitude de segurança importante, mas insuficiente para garantir a integridade e a vida da pessoa no trânsito.

Escrevi sobre isso no post O Carona, a partir dos resultados da pesquisa apresentada pela SBOT (Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia) sobre os hábitos de beber e dirigir dos jovens e de uso do cinto de segurança. Qual é o principal resultado dessa pesquisa?  Mais de 80 % dos jovens que afirma beber e não dirigir embarca em uma carona com amigos que beberam, no retorno da balada!!!!! A carona no carro dos amigos bebedores não está mesmo associada a grandes riscos, ao menos nenhum que valha a pena o uso do cinto de segurança – 74 % dos jovens nunca utiliza o cinto no banco traseiro dos veículos. Ninguém entendeu nada?!!!

Além do mais, para frustração de muitos, não vivemos em um Estado Policial. A verdade é que amplas áreas urbanas e cidades inteiras estão fora das garras da ”Lei seca” – e assim será, se houver estratégia e alguma inteligência. Apesar da cobrança massacrante da mídia, basta a presença da fiscalização; ela jamais será onipresente. Portanto, muita gente continuará bebendo e dirigindo nas cidades e nas rodovias e, infelizmente, continuarão acontecendo graves acidentes e mortes embalados, ou não, pelo álcool.

Tudo isso escapa, é claro, a esse jornalismo primário que estampou a capa do O Globo. A marca desse jornalismo é a incapacidade de investigação da realidade tal como ela é: COMPLEXA. Tudo deveria partir de uma dúvida: esse crescimento de 8 mortes a mais de jovens pode ser atribuída ao consumo de álcool? Eles morreram bêbados, com muito mais álcool do que sangue nas veias?  Morreram todos na longa madrugada da balada dos finais de semana, ou foram morrendo ao longo dos dias úteis?  Eram condutores ou passageiros de veículo automotor? Eles usavam cinto de segurança? Qual foi a velocidade estimada de cada acidente? Quantos eram pedestres? Quantos eram ciclistas?

Ninguém quer saber, ninguém investigou. Não se gastou meio neurônio sequer para qualificar o dado estatístico bruto entregue pelo DETRAN. Na matéria que segue a manchete terrorista do O Globo, há apenas a denúncia de que morreram mais jovens desde que a Lei Seca existe, assim como poderíamos pensar que morreram mais jovens desde que entraram na frota do Rio de Janeiro tantas milhares de motocicletas e carros, ou que morreram mais jovens desde que aumentaram a chuvas nos últimos meses, ou que morreram mais jovens desde que disparou o consumo de crack entre os cariocas…

É um desaforo, porém, dizer que O Globo imprima em suas páginas um jornalismo primário. Não faz sentido, a não ser que… que seja proposital. Tudo segue uma linha editorial – nem uma única palavra, muito menos uma idéia inteira, escapa à linha ideológica que orienta esse e todo meio de comunicação.

O que se percebe mais uma vez é que a conclusão do fracasso da Lei Seca já está pronta antes dos fatos e deriva, como escrevi anteriormente (Mas, entretanto, todavia… O primeiro ano da “Lei Seca”), de uma linha de pensamento que rebaixa ou simplesmente expurga os ganhos, ao mesmo tempo em que amplifica a insuficiência e até a ilegitimidade, da lei diante da violência do trânsito no país.

© Eduardo Biavati e biavati.wordpress.com, 2008/2013.

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Publicado por

biavati

Sociólogo, escritor, palestrante e consultor em segurança no trânsito, promoção de saúde e juventude.

8 comentários em “Lei Seca não reduz mortes de jovens!”

  1. Mais do que uma linha ideológica (que também existe!), o simplismo irresponsável da imprensa é muito causado pela incompetência de se enxergar um fato por inteiro.

    É mais fácil, mais prático e rende melhoras manchetes ver apenas uma ponta do iceberg e transformá-lo em um todo do que tentar analisar todos os fatores envolvidos – que, além do mais, não caberia na manchete nem no espaço reservado para a matéria, além de não ser atraente para o leitor, que não tem tempo (creem eles) de ler uma análise mais completa.

    Ainda bem que temos os blogs e blogueiros lúcidos e com boa capacidade de análise como você!

    Grande, Edu!

    Beijos,
    Alê

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  2. Oi, Alê,

    Bemvinda!!

    Blogs e blogueiros deveriam aprender uma liçãozinha: MENOS MENOS MENOS!! Quando você se cansar de cortar todos os adjetivos, todos os rodopios e rococós, corte ainda o que sobrar. O leitor agradecerá. rararararararrara. Era isso que ensinava Alê-mãos-de-tesoura me matando de angústia, transformando meus parágrafos em frases quase telegráficas (eu achava que eram), mas vê-se que não adiantou muito.

    Enfim, um dia escreverei posts enxutos. Mas é que o assunto não deixa e, nesse caso, eu fiquei muito indignado com a pobreza analítica e descompromisso ético do O Globo e, de resto, da mídia com relação à Lei Seca.

    Gostei da visita e do comentário mais ainda. Escreva toda vez que quiser. Tô aí pro ping-pong.

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  3. Oi, Prof. Luciano,

    Bemvindo!

    Pois é, engolimos coisas assim como aderimos a idéias sem parar muito para pensar. Nesse caso dos jovens cariocas e da Lei Seca, francamente, eu quase comprei a pauta do O Globo… li e reli umas 2 vezes até desatar o que significava aquela manchete terrorista da capa.

    Estive me Ijuí, mas foi tão rápido que nao pudemos nos encontrar. Vamos pensar em algo com os alunos da Unijuí em 2010? Abraço,

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  4. Oi, Biavati,

    Tive a oportunidade de colocar em prática uma palestra de educação no transito para uma turma de oitava série e tive um exelente retorno.

    Espero poder continuar mutiplicando esta idéia que aprendi com vc.

    Abraço Sérgio.

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  5. Olá, Sérgio,

    Bemvindo ao blog!

    Foi legal a experiência com a gurizada? Eu gosto muito e acredito mesmo nessa estratégia de sensibilização para condutas de autocuidado.

    Mantenha contato. Abraço. Biavati

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  6. Diz o provérbio que “A sorte é como um raio, nunca se sabe aonde vai cair”.

    A nossa, caiu com a chuva que inundou a cidade e matou muita gente. De quebra, arrancou a placa dianteira do nosso carro. Uma bobagenzinha diante da tragédia. Mandamos fazer outra imediatamente, e pronto. Pronto?

    Noite seguinte, somos parados pela blitz da Lei Seca. Nenhum álcool no sangue, documentos em ordem, carro rebocado! Motivo? A malfadada placa dianteira. Apelamos para o bom senso, mostramos o recibo da nova placa, e ouvimos: “Bom senso não existe, o que existe é a lei”. O prefeito, alheio a isso, mostra bom senso, e anula todas as multas de transito no período da enchente.

    Carro rebocado, véspera de feriado, começa a saga para retirá-lo. Inconformados com o aspecto “caça-níqueis” da blitz, mandamos carta ao Globo que foi publicada. Num tom conciliador, nos liga o assessor do manda-chuva da Lei Seca, Sr. Bragado; pede desculpas, reconhece o excesso cometido pelo agente, reafirma que eles são pelo bom senso, e diz que o coordenador geral quer falar conosco para se desculpar.

    Recebemos um gentil e-mail do Sr. Carlos Alberto Lopes, reconhecendo o erro, e nos convidando para visitá-lo no Palácio Guanabara. Recuperamos o carro depois de pagar reboque e diárias, e respondemos ao tal senhor que o erro de um agente não invalida o mérito de uma operação que salva vidas, e que não pretendemos roubar seu precioso tempo indo ao Palácio.

    Eis que a novela não acaba: devolvem o carro, mas cadê os documentos? Quinze dias depois, cinco horas perdidas no telefone, duas idas ao Detran, e nada de documentos. Prazos infringidos, carro parado (taxi diário Lagoa/Recreio/Lagoa a R$ 110,00 por dia), informações desencontradas, e a constatação inacreditável que 22 dias depois, e quase dois mil reais jogados no lixo, vamos passar mais um fim de semana a pé, por obra da insensibilidade de um agente, da ganância do Estado, e da incompetência burocrática do DETRAN-RJ.

    Decidimos ir a Justiça. Vamos às Pequenas Causas, e resolvemos isso rapidamente, pensamos. Nada feito! Não se pode processar um órgão público nesse foro. Resta a Justiça Comum, onde tudo demora dez anos, e custa uma fortuna.

    Agora me digam: O que fazer? Deixar pra lá?
    Keith Cattley, Rio de Janeiro, RJ

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  7. Bemvindo, Keith,

    Obrigado pelo comentário, na verdade um depoimento muito claro sobre a irracionalidade do Estado e de seus agentes.
    Eu não acho que se deva desistir de um direito, mesmo quando conquistá-lo exige um esforço e uma paciência sobrehumanos.

    É revoltante que seja assim, mas não surpreende quando se trata de uma instituição completamente falida e anacrônica como é o DETRAN. Com raríssimas excessões, os departamentos estaduais de trânsito são um desserviço à cidadania, uma espécie de antesala do horror burocrático, quase uma sucursal do péssimo Judiciário que temos.

    Espero que tudo se resolva o mais brevemente possível para você. Melhor seria se isso prestasse para uma revisão dos procedimentos no DETRAN… mas isso é melhor esquecer.

    Abraço,

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