Como ser a favor da Lei Seca (desde que ela não exista)


Quem mal pensa, mal escreve – esse é o resumo da poeira de idéias de David Coimbra, que ocupou a segunda página do Zero Hora de hoje, dia 18 de novembro, a pretexto de criticar o “espírito” pouco civilizado da Lei Seca.

David acredita que existem sociedades inteligentes – como a Grécia, que em nome da democracia rejeitou um referendo popular sobre a entrega completa da soberania econômica ao sistema financeiro europeu, e muitos outros países de “democracia consolidada” em que o Estado que confia tanto no indivíduo que lhe dá a liberdade de marcar o tiquete da própria passagem do ônibus (uau!!!).

Na banda de cima da linha do Equador, o agente policial tem bom senso e toda autoridade de julgar se um cidadão está em condições de seguir viagem em seu veículo depois de beber um tantinho de álcool, acredita David. Ora, que mal pode haver em tão inocente ato do cidadão? Na Inglaterra, na Alemanha ou na França, o agente público e o cidadão vivem um equilíbrio de forças que apenas sociedades muito avançadas alcançam: o agente público não sai por aí duvidando dos outros e distribuindo porradas em nome da lei, e o cidadão fica tão bem com isso que bebe, mas sem abusar muito!, porque é cidadão consciente.

Por aqui, em terra de tabajaras, ao contrário, só sabemos a linguagem da porrada. Como não atingimos ainda esse nível superior de inteligência social, as leis são draconianas e nos forçam a ser um bando de malandros, segundo a sociologia de David, que cita o caso do limite de velocidade em rodovias. Há rodovias, a maioria, cujo limite é de 80 km/h! 80!! É um limite tão ridículo que obviamente será transgredido, não por culpa do pobre viajante, mas por culpa do Estado que inventou um limite impossível, de acordo com a análise apurada de David. Tudo aqui é assim: imposto alto demais, tem que sonegar; monogamia, tem que trair. Não há o que censurar, pelo parâmetro ético e moral do colunista, porque a maioria das pessoas só quer viver em paz. É o caso da Lei Seca!!

Essa tal lei tem criado um problemão nas ruas de Porto Alegre: o pobre do agente da EPTC (a quem aliás NÃO compete legalmente a fiscalização da alcoolemia, mas isso David ignora) se vê obrigado a cumprir uma lei que lhe priva do bom senso, e o pobre do cidadão é obrigado a gozar da cara do agente constrangido, dizendo o mantra: “eu-não-sou-obrigado-a-produzir-prova-contra-mim-mesmo”. Fica chato pros dois!

A Lei Seca brasileira não permite que o agente constate que o motorista bebeu, mas está bem sóbrio. Não bastaria bater olhômetro no cidadão e discernir no ato que pode dispensá-lo sem punição? Pois é, não bastaria, David, nem aqui, nem na bela França. Na terra do champagne, todos os anos, quase 60% de todos os condutores são obrigados a meter a boca em um bafômetro. Para evitar que o bom senso do agente escolha um condutor mais alegre com cara de imigrante do norte da África ou hábitos mulçumanos, ninguém tem a menor dúvida do papel anônimo e civilizatório do Poder de Estado, tanto quanto têm certeza de qualquer quantidade de álcool incapacita o cidadão a “viver em paz” com os demais no trânsito. Nas sociedades inteligentes, só gente muito desinformada acredita ainda que se pode beber e ficar sóbrio simultaneamente.

O erro que você lê no espírito da lei nada mais é, portanto, do que a medida da pequenez de suas idéias. Não são sequer autênticas – trata-se de uma mesma operação ideológica que se repete desde 2008 e que impõe a conclusão do fracasso da Lei Seca ANTES dos fatos. É péssimo jornalismo e é desonesto porque nada acrescenta ao aperfeiçoamento das instituições ou da legislação, como reafirmei no último post por conta de imbecilidades publicadas na mídia recentemente.

No próximo domingo, junte-se à caminhada do Dia Mundial em Memória das Vítimas de Trânsito. Em Porto Alegre, a caminhada parte do belo Parque da Redenção (maiores informações no jornal Zero Hora). Quem sabe você descobre que bebendo e dirigindo ninguém conseguiu “viver em paz” nos últimos tempos e muitas vidas se perderam em solo gaúcho.



© Eduardo Biavati e biavati.wordpress.com, 2008/2013.

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Publicado por

biavati

Sociólogo, escritor, palestrante e consultor em segurança no trânsito, promoção de saúde e juventude.

10 comentários em “Como ser a favor da Lei Seca (desde que ela não exista)”

  1. Infelizmente esses caras têm acesso a colunas em jornais, blogs, televisão. Usam a própria falta de informação como desinformação.
    Gostaria de saber se ele acharia mais adequado o policial manda-lo sair do carro e caminhar sobre uma linha de giz no chão, na vista de todo mundo, para comprovar seu grau de sobriedade, como se faz em alguns países acima do equador.

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  2. Oi, Osias,

    E que espaço! Cabeça da segunda página da edição do dia. Acho que li umas 4 vezes de raiva, torcendo para que poucos leitores tenham se dado ao trabalho de fazer o mesmo. Bom, não tinha como deixar passar batido. Sem falar do desrespeito ao dia 20 vindouro.

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  3. Esta bugrada abaixo da linha do Equador… não aprende mesmo…
    Saiu algo na Folha de ontem (19) também, na seção Tedências e Debates. A opinião contrária aos rigores também vai na linha do não sejamos tão radicais. Acusa ainda certo neo(?)moralismo da saúde. Confiram.
    Abs,

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  4. Ola, Victor!

    Bom, esse neomoralismo da Saúde existe mesmo e é bom tomar bastante cuidado porque se trata de um discurso autoritário, monológico, pintado com cores fortes de racionalismo cientifico (já vimos esse filme tantas vezes). Mas a acusaçao do filósofo na Folha ontem é tao equivocada quanto a defesa de maiores rigores do Senador Ferraço – péssimos os argumentos de ambos. Tudo indica que caminhamos para a abolição do bafometro, mas só por fraqueza e miséria institucional. Eu não abriria mão tao facilmente nesses tempos de recuo global da democracia…

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  5. Fala Eduardo. Não li o artigo do ZR, mas acredito que neste nível há inúmeros pubicados diariamente no Brasil. O estímulo ao consumo de bebida alcoólica e a pressão para aceitação social pelo seu uso é muito grande, em geral negligenciando a segurança do outro. Fora o relativismo de nossa cultura, tão bem tratado pelo DaMatta, são fatores que nos faz remar “contra a maré”.
    Acontece que as condições de tráfego são cada vez mais seletivas e exigem atenção redobrada, o que não dá para fazer bem sob efeito de álcool. Imagino que essa discussão tomará novos níveis caso o projeto de zero de álcool aprovado pelo Senado siga em frente.
    É possível passar vários anos, e mesmo nos grandes centros, sem ser parado numa blitze. De uso de álcool, nem se fala. Mas gera barulho. Por que não optamos por dirigir socialmente em vez de “beber socialmente”? Grande abraço. Prepare suas malas porque Redenção te espera!

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  6. É, rium com ela, pior sem ela!
    Para quem tem oportunidade de trabalhar com trânsito, sabe que, apesar das falhas da lei seca, ela é um dispositivo que impulsiona ao “pensar duas vezes” pelas autoridades responsáveis pelo cumprimento da lei. Ou seja, ele (a autoridade) usará seu poder discricionário com muito mais cuidado, pois no mínimo, poderá cair na boca do povo. No entanto, concordo em número, gênero e grau contigo sobre o bafômetro. É um aparelho indispensável para reafirmar lisura e indicar transparência nas fiscalizações de alcoolemia. O etilômetro deixa tanto o agente, quanto a sociedade mais tranquilos, pois se de um lado (agente) abre mão do ônus de comprovar subjetivamente o ilícito, de outro (sociedade) apaga a sombra do abuso do poder. Portando deveríamos convergir forças para integrar o teste de bafômetro ao dia-a-dia do trânsito brasileiro.

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  7. Olá, Magno,

    Bemvindo ao blog!

    Obrigado pelo comentário. Sim, devemos unir forças e argumentos pela validade do bafômetro, não tenho dúvidas disso. Digamos que é uma espécie de garantia democrática preciosa. Aliás, não está em questão a abolição do bafômetro – qualquer acusado poderá solicitar no ato o instrumento para produzir prova PARA SI. A questão é que dispensando-se o bafômetro na PRODUÇÃO da prova contra o cidadão, introduz-se uma zona cinza de arbítrio e de forte assimetria de poder. Esse é um filme antigo que eu não gostaria de assistir nas ruas.

    Apenas mais um ponto: a crítica que se repete, mais uma vez nessa coluna ridícula do Zero Hora, de que já que sem o bafômetro não se configura nem crime, nem prisão, e que, portanto, a Lei Seca é só uma fachada para aplicar uma multa salgada no lombo do cidadão, deixa escapar o fato mais importante de todo esse processo: o objetivo maior da Lei, com ou sem bafômetro, não é prender os “assassinos” do trânsito, mas DESESTIMULAR, DESVALORIZAR, e, em última instância, INTERROMPER uma viagem sob influência do álcool.

    Abraço,

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