Quando dizemos para um jovem: “use o cinto de segurança”, “não dirija depois de beber” ou “use o capacete”, impondo-lhe o mandamento de cuidar de si porque assim está estabelecido legal e moralmente pela sociedade a que ele pertence, o que lhe oferecemos em troca?
Podemos responder facilmente que lhe damos a VIDA, e estamos conversados. Aliás, raramente isso é um conversa, não se trata de um diálogo: o que mais poderia querer um jovem além de viver muitos e muitos anos com plena saúde (mesmo que isso seja uma impossibilidade que o passar das décadas revela inexoravelmente)?
Se a educação para o trânsito fosse um exercício de diálogo, talvez ouvissemos do jovem que ele quer muito VIVER, que lhe importa muito pouco SOBREVIVER. Essa educação não é, porém, um diálogo, pouco se esforça em estabelecê-lo, e não surpreende que fale tão pouco aos corações e às mentes dos jovens – não importa quantas mil “tuitadas” e perfis em redes sociais sejam criados, forçando a barra do papo com a galera.
Os educadores se especializaram em transferir ao jovem a responsabilidade por essa incomunicabilidade. “O que entra por um ouvido, sai pelo outro”, capitula o professor-de-saco-cheio. “O problema é o esgotamento dos valores!”gritam os moralistas de plantão, também autodenominados éticos. “Ninguém quer nada com nada”, desistem de vez os mais céticos. Poucos se dão ao trabalho, entretanto, de escutar o sacrifício geral das liberdades que se pede pelo “bem da segurança”.
Estamos no meio de uma negociata nos últimos 20 ou 30 anos, da qual sairemos com alguma segurança e liberdade nenhuma, alerta Contardo Calligaris no ótimo artigo publicado na Folha de São Paulo, em 27 de janeiro. Parece um alerta exagerado, mas vamos lembrar rapidamente o que ocorreu ao longo do século passado com as crianças na Inglaterra.
A impressionante redução de mortes de crianças, especialmente por atropelamentos, desde a década de 20, foi obtida às custas de uma restrição cada vez maior de sua mobilidade independente. Pais, professores e autoridades reagiram crescentemente ao “mundo perigoso” do trânsito, como conta o geógrafo John Adams, aumentando a idade permitida para que seus filhos brincassem nas ruas, atravessassem-nas, andassem de bicicleta, e se conduzissem sozinhos para a escola e pela cidade.
A vitória exemplar da segurança das crianças inglesas foi o verso da supressão de sua liberdade na cidade e, em nossa realidade atual, de seu descolamento da vida urbana por meio do confinamento em condomínios de “alta segurança”. Experimente falar de “pedestres” em qualquer escola particular de classe média, em qualquer cidade grande ou média brasileira, para saber em que resultou esse descolamento.
Atrasamos a experiência de enfrentamento direto do trânsito urbano, mas em algum momento ele acontecerá – justamente na adolescência, quando a experiência do risco se torna indissociável da construção de identidade do jovem. Como fazer isso sem liberdade?
De modo geral, os pais modernos querem os filhos por perto, de preferência sob máximo controle, tudo bem, e muitos adoram, como já disse Calligaris, que os filhos demonstrem não serem suficientemente maduros para sair pelo mundo e para correr os riscos que o desejo acarreta. Mas eles sairão, todos sabemos, e os pais passarão longas madrugadas se perguntando para onde foram, com quem estão e se voltarão e quando.
Teríamos feito melhor em prepará-los para viver os riscos do mundo, ao invés de aliená-los da reflexão sobre a violência do trânsito, e de muitas outras que marcam nossos encontros com os outros. O nobílissimo esforço de proteção da infância teria, quem sabe, encontrado uma continuidade coerente, ao invés de se esvair em um poste no fim de noite da balada.
Promover a reflexão sobre a violência é uma coisa bem diferente do que encher a boca de indignação pelas “mortes” e pelos “acidentes evitáveis, como ouço sempre de autoridades públicas e policiais diversas, e até de profissionais de saúde, todas sem um pingo de sentido no que dizem. Quase perguntei em novembro passado para um Secretário Municipal, “muito sofrido” com as mortes de jovens:
“você sente realmente o que você está dizendo? Ou são apenas frases feitas que lhe caem bem?”
A diferença é que quando não se fala de violência com autenticidade, como quem quer ouvir o que o outro pensa, não há conexão, não há comunicação, não há diálogo – e autenticidade não é algo que se disfarça diante de 500 jovens.
Pois, então, o que a educação para o trânsito tem a oferecer em troca desse desejo de viver do jovem? Oferece viver 100 anos a 10, ao invés de 10 anos a 100? Ou nada tem a oferecer?
Qual é sua opinião?
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Concordo com você.
Aliás, penso até que muitas políticas públicas para redução da mortalidade não são efetivas pois os mortos e os “sobreveviventes” são tratados como estatísticas e não como vidas que foram drasticamente interrompidas, seja pela morte ou pelas sequelas. A maioria dos gestores preocupam-se em melhorar seus números e não convencer pessoas de que podem viver mais e melhor, com segurança. Quem realmente sente-se tocado e entristecido ao anunciar o grande percentual de jovens mortos todos os anos?
Que nessa década de ações de segurança que se inicia, os órgãos públicos prezem verdadeiramente pelas vidas e não em reduzir a mortalidade apenas para apresentar bons resultados à ONU.
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Já com saudades de seus textos… me aventuro a refletir mais:
A fala e a capacidade de se comunicar que distingue o Homem de outros seres, por mais espantoso que seja, é um dom que nem sempre ele domina.
O exemplo da incapacidade humana ao diálogo, de se fazer entender (não basta passar a mensagem e pronto!) está se revelando cada vez mais em nossa sociedade. Ela está clara no abismo que há entre pessoas nas relações em sociedade (seja no casamento – entre casais e filhos, nas instituições de ensino – entre docentes, discentes…, nas empresas – entre empregadores e empregados; chefes e chefiados; nas entidades governamentais – entre governantes e sociedade ‘governada’.
E por ‘sermos fracos’, cerceamos a liberdade como medida extrema de algo que se perdeu no caminho. É possível retomar?!
Porém alguns dominam a arte do diálogo e da comunicação eficaz. De alguma forma Marketing e Comunicação Social nos têm convencido (se consome cada vez mais, produtos, serviços, conhecimento, ideias…), por falar de nossos anseios e desejos e nos apresentar com respostas rápidas, diretas a coisas que queremos ter, fazer parte… Será que no trânsito também não seria possível fazer o mesmo? Afinal, quem não quer VIVER BEM?! Quem não deseja o AMANHÃ? As políticas para trânsito e transportes falam de pessoas, de mobilidade, de segurança, de mais qualidade de vida… mas não convencem ainda! Porque talvez nossos porta-vozes também não estejam convencidos.
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Olá, Maria Amélia,
Leitora e comentadora fiel!
É um fenômeno paradoxal que vivamos um abismo de comunicação em muitas dimensões essenciais da vida – seja no campo privado, seja no campo público – justamente quando temos à disposição tantas ferramentas de… comunicação!! Nunca estivemos tão conectados uns aos outros por tantos meios, instantâneos, gratuitos muitas vezes. E não apenas conectados por palavras ou sons, mas por imagens, fotos, vídeos! E, no entanto… o que disso tudo foi absorvido pela educação (não apenas a de trânsito, que é um caso minúsculo de um processo muito maior) em benefício de uma revolução do aprendizado e de uma integração com o mundo real? Tanta comunicação para tão pouca criação e transformação!
Não tenho dúvida de que os gestores de trânsito e transporte, de educação e de saúde deveriam mergulhar urgentemente na reflexão do seu modo de comunicação porque ele refletirá, como disse no post, a autenticidade de cada política e ação – a maioria das quais, hoje, carece, da menor repercussão com quem deveriam servir.
Se o post moveu sua aventura de pensar, então é mais do que eu poderia querer! Obrigado
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Olá!
Através de pesquisas para um trabalho da faculdade (sobre a lei seca) pude conhecer este blog. Estou muitíssimo encantada com todas essas colocações. Como uma viciada em leitura, espiei este blog inteiro. Achei muito inteligente a atitude de estar sempre citando os JOVENS, aliás sou uma, tenho apenas 18 anos, por mais que por muitas vezes pense como uma pessoa mais velha. Acredito que temos que ser a mudança que queremos ver. Nós, jovens, somos assediados a todo momento por uma gama infinita de informações, e por muitas vezes nos perdemos neste mundo tão amplo. E é por isso, que acredito, que devemos reservar um momento do nosso dia para fazermos uma reflexão daquilo que realmente nos importa. Não é porque passa na tv que temos que aderir ou consumir! Estava a pensar… Será que uma multa tão alta para aqueles que dirigem sobre os efeitos do álcool ou então que se negam a fazer o teste do bafômetro realmente surte algum efeito? Pela experiência que observo em amigos, não. EDUCAÇÃO é o que falta em nosso país, isso sim seria um direito e uma sanção. Uma verdadeira punição seria colocá-los a prestar serviços àqueles que realmente já sofreram e aprenderam que bebida e condução não combinam. Para falar a verdade, nem diria que isso seria uma sanção negativa visto que seria uma oportunidade ímpar de aprendizagem! Por isso que precisamos de bons legisladores, de cidadãos conscientes!
Parabéns pelo trabalho!
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Olá, Sarah!
Pois, então, seja muito bemvinda ao blog! :)
Gostei muito de saber que tenha lhe apoiado de alguma forma na pesquisa e, mais do que isso, tenha inspirado a reflexão, porque é para isso que eu comecei a utilizar essa ferramenta em 2008.
Concordo com você: a educação é um privilégio valioso, mesmo quando ela é imposta como uma sanção. Quer ver um exemplo disso? Durante muitos anos coordenei um projeto que ocorria no Hospital SARAH-Brasilia, chamado “Projeto Adolescente”, que consistia em receber jovens sentenciados pela Vara da Infância e Juventude a cumprir uma medida sócio-educativa de prestação de serviços à comunidade junto aos pacientes internados em reabilitação. Criei uma página aqui no blog para falar desse projeto [https://biavati.wordpress.com/projetos/projeto_adolescente/].
Esse teu comentário foi uma gota d’agua que faltava para eu retomar, aliás, o blog que anda bem paradão desde o ano passado – um pouco de falta de paciência, um pouco de falta de tempo, mas também a dispersão de conteúdos por outros canais, como o Facebook e o Twitter, que eu tenho usado frequentemente. Vou retomar o ritmo aqui no blog!
Escreva sempre que quiser. A palavra de ordem aqui é: ping-pong. Abraço,
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