Mas, entretanto, todavia… O primeiro ano da “Lei Seca”


A “Lei seca” foi o fenômeno mais importante do trânsito brasileiro na última década. Poucos temas mobilizaram tanto o debate público e foram tão monitorados, comparados, quantificados, avaliados e analisados.

No aniversário de primeiro ano, grandes números falaram do sucesso da lei, mas quase sempre em contraponto aos exemplos abundantes de uma fiscalização deficiente e da infinita esperteza nacional em burlar regras. O sucesso sorriu amarelado.

Segunda-feira, 22 de junho. A matéria de abertura do Jornal Nacional, da Rede Globo, ainda repercute os primeiros doze meses da alcoolemia zero. Na saída de bares e boates de Fortaleza, taxistas e mototaxistas vêm oferecendo um serviço espertíssimo: eles avisam aos baladeiros onde está a fiscalização mais próxima e cobram módicos R$ 20 para levá-los em seus carros para longe dos bafômetros. Adiante, entregam a direção aos proprietários e retornam em busca de novos clientes.  Ao fundo, se veem os giroscópios piscando, a cena da blitz montada.

Na semana anterior, outro programa da Rede Globo, o Profissão Repórter, havia batido na mesma tecla por mais de 40 minutos: a frouxidão da fiscalização, os jovens abastecendo-se de bebidas à vontade nos postos de gasolina antes da balada, a regressão do medo dos bafômetros, a impunidade generalizada – carteiras que nunca foram suspensas, prisões que não resultaram em nada, as mesas de bares cheias como antes, tudo resumido por um garçom: “A-VA-CA-LHOU”.

Valeu, mas nem tanto assim? Foi bom, mas não durou? Como NADA na mídia acontece ao acaso, o que se revela e o que se oculta nessa linha editorial?

A fiscalização da alcoolemia dos condutores sempre foi considerada o Calcanhar-de-Aquiles da  nova lei. Não houve crítico da alcoolemia zero que não apostasse na debilidade, despreparo, e até na usual corruptibilidade do Poder Policial.  Um editorial da Folha de São Paulo após o carnaval desse ano ainda levantava dúvidas quanto ao cumprimento de uma norma de “excessivo rigor penal com os infratores  e nenhuma tolerância quanto a níveis de álcool no sangue do motorista“.

No entanto, a “Lei Seca” não era apenas mais rigorosa e intolerante. Além da revisão quantitativa do limite tolerado de álcool no sangue, ela desencadeou uma mudança qualitativa crucial: a liberação do uso do bafômetro e a possibilidade de prisão do condutor. Decorre disso a superação de um entrave vergonhoso que nos imobilizava há décadas: a falta de bafômetros; como fiscalizar a alcoolemia dos condutores sem eles?

A nova lei deu à ação policial o que lhe faltava antes: PODER.

Dispor de bafômetros e poder usá-los é um grande passo; utilizá-los sistemática e inteligentemente é outro assunto. Há quem defenda que a fiscalização seja permanente, uma ameaça ininterrupta à transgressão da lei, funcionando tal como os bares, de segunda a segunda,  mas faltam bafômetros, faltam policiais… E as blitze com endereço e horário fixo? A anti-tática militar! Desmoralizar a fiscalização é como chutar cachorro morto.

A verdade é que amplas áreas urbanas e cidades inteiras estão fora das garras da “Lei seca”  – e assim será, se houver estratégia e alguma inteligência. Apesar da cobrança massacrante da mídia, basta a presença da fiscalização; ela não tem que ser onipresente. Além do mais, se houver mínima prioridade, as noites do fim de semana e os roteiros de lazer predominantes da galera de 15 a 30 anos continuarão sendo por um bom tempo os alvos da ação.

Portanto, muita gente continuará bebendo e dirigindo nas cidades e nas rodovias e, infelizmente, continuarão acontecendo graves acidentes e mortes embalados pelo álcool.

A imprensa pode se fartar de registrar a continuidade desse comportamento como prova irrefutável do fracasso da lei em instaurar a universalidade da obediência à nova regra. A crítica parecerá uma contribuição valiosa para o aperfeiçoamento das táticas de fiscalização, mas ela tem, na verdade, outro conteúdo: questionar o “rigor excessivo” de uma lei que não se faz valer.

A imprensa poderia demonstrar na mesma história que os espertos de Fortaleza e seus taxistas de plantão mudaram seus comportamentos POR CAUSA da força da lei, da presença policial e dos bafômetros. Há um ano, algum taxista oferecia serviços “fura-blitz” na porta de boates? Alguém se importava em dirigir depois de beber? Havia alguma fiscalização de alcoolemia antes de junho de 2008?

Não há quem ignore hoje que sua conduta de beber e dirigir PODE ser flagrada e punida. Parece pouco? Pois essa é uma mudança substancial que  modificou a conduta de milhões de cidadãos.

O medo da repressão é, também, educativo, como sabem há bastante tempo os ingleses do Think! No final do ano passado, comentei sobre a campanha pública sobre beber e dirigir, lançada para o período de festas de natal e ano-novo na Inglaterra. Elas abandonaram a antiga insistência em conscientizar os condutores alcoolizados pelas consequências dos acidentes – carros batidos, mortos e feridos. Ao invés disso, elas falam agora diretamente das várias consequências legais, econômicas, e até trabalhistas, de ser autuado pela fiscalização. A idéia é atingir o bebedor comum, que pensa que algumas latinhas de cerveja não podem ser assim tão do mal (o tal que “bebe socialmente”, se é que isso existe), reforçando o medo da fiscalização – aquele famoso momento da dúvida com o qual passamos aqui também a conviver: “e se”…  e se houver mesmo uma blitz hoje… e se eu for parado… e se eu…

Pois bem, o medo da repressão, e até a dúvida de sua força ou existência, motivou muitas atitudes novas: resgatamos do fundo do baú a idéia do “amigo da vez”, passamos a consumir as cervejas sem álcool, transferimos parte do consumo na rua para dentro de casa. Todo mundo testou o descolamento entre dirigir e beber exigido pela nova lei.

Essa foi a grande experiência do primeiro ano da “Lei seca”: descobrir que o direito privado ao consumo de bebidas alcoólicas nunca esteve ameaçado. Apesar da histeria inicial e de liminares raivosas, só estavam em jogo as condições impostas para se conduzir um veículo na via pública. Isso, sim, magoou fundo – ninguém queria transporte público, ninguém queria taxi com desconto, nem passear de carona de bar em bar – as pessoas queriam dirigir seus próprios carros, como sempre fizeram, depois de beber o quanto lhes aprouvesse.

A vida social foi ameaçada? Não. Boçalizamos o lazer? Também não. Fulminamos a cultura nacional do “samba, suor e cerveja”? Somente no delírio de certo juiz goiano. Ninguém deixou de beber no Brasil por conta da “Lei seca” – que, portanto, de seca não teve nada. Talvez alguns tenham bebido menos, ou nada eventualmente, mas em nenhuma região do país houve queda do consumo de bebidas alcoólicas. Não é casual o alinhamento de toda indústria de bebidas com a lei: o usual e malicioso “Beba com moderação” foi abandonado pelo direto “Se beber, NÃO dirija”.

É curioso que esse exercício de adesão à regra da alcoolemia zero tenha sido desvalorizado ou simplesmente anulado na reportagem da realidade que a mídia apresentou à toda sociedade. A matéria do Jornal Nacional investigou os demais baladeiros cearenses para saber como eles voltaram para casa? Quantos deixaram o carro em casa para irem para a balada? Quantos organizaram um esquema alternativo elegendo um “amigo da vez”? Os personagens da reportagem são casos isolados e pitorescos ou exemplos da maioria cearense que vem recorrendo à malandragem dos taxistas de plantão?

O movimento de revisão do padrão de lazer, sempre associado ao consumo de álcool, sempre casado com a direção do veículo automotor, foi o fato mais significativo da “Lei seca”, mas ele foi expurgado da edição que a mídia, muito além do Jornal Nacional, fez desse primeiro ano da lei. É uma pena porque quando ignoramos esse fato, ficam sem explicação os excelentes resultados de redução de mortes (800 mortos a menos!) e feridos alcançados nacionalmente desde o advento da “Lei seca” – tratados, aliás,  como resultados bons, até razoáveis, mas que podiam ter sido muito melhores, não fosse a fiscalização de araque, blá blá blá, conforme cartilha editorial já mencionada.

Tudo poderia ser muito mais, é claro. Nos doze meses passados, aprendemos que é possível mudar. Grande vitória!

Nos próximos cinco anos, haverá maior ou menor fiscalização do beber e dirigir? Poderemos, então, afirmar que houve mudança sustentada de comportamentos, por medo da repressão ou consciência de segurança, e que mudamos uma cultura de lazer?

© Eduardo Biavati e biavati.wordpress.com, 2008/2013.

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Publicado por

biavati

Sociólogo, escritor, palestrante e consultor em segurança no trânsito, promoção de saúde e juventude.

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